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05/02/2013
Os espirros da tarde
Moro num apartamento cercado por edifícios por todos os lados. Tenho, pois, muitos vizinhos. Quase todos desconhecidos que, no entanto, comunicam-se como podem ou devem.
Um deles gosta de passarinho. Eu também não desgosto, mas pouco sei de seus viveres e morreres. Dizem que o tal passarinho é bicudo de nobre cepa. Recebeu Pavarotti como nome de batismo. Pudera, às seis de la matina rompe o peito e acorda o pessoal num raio de cem metros. Ultimamente o Pavarotti anda silencioso. Uns dizem que foi devorado por um gavião solidário com os dorminhocos. Há controvérsias. Outros dizem que o Pavarotti não está cantando porque está na muda. Na muda, bicudo prudente não canta.
Atrás do prédio mora uma alma piedosa que acolhe todos os gatos e cães sem dono do bairro. Os gatos ficam no jardim. Os cães, no quintal. Se durante a noite uma alma penada roçar a porta da casa ou se a coruja soltar um gemido de dor, os gatos miam e os cães latem numa sinfonata magistral. Os sons são tão emocionantes que os moradores da região acordam, assomam as suas janelas e, lá de longe, acompanham o miar dos gatos e o latir dos cães, abanando mãos e braços.
Numa outra banda há uma mercearia e um cão de guarda. A mercearia não abre aos finais da semana. Daí deduzo que o cachorro passa o sábado e o domingo sem almoço ou janta. A fome do cão fala mais alto do que o canto do Pavarotti. O cachorro da mercearia marca frequência nos finais de semana. Geralmente no período da tarde.
De todos os sons há um com hora certa. São o resultado dos espirros de um vizinho. Não sei como não explode o peito. O espirro é manifestado sempre na hora certa, ou seja, na hora do almoço. Suponho que ao chegar em casa do trabalho, o dono do espirro tem seu nariz agredido por alguma alergia ou, talvez, uma comida mais apimentada. Então espirra uma, duas e muitas vezes. Não é um espirrinho mequetrefe. É um espirrão daqueles! Um não, vários. Bomba arrasa quarteirão, como diria o meu amigo Gardingo.
Penso que o dono do espirro é um sujeito bonachão. Deve ser quarentão. Não deve usar rapé. Suponho que que ri atoa. Gostaria de conhecê-lo. Deve ser careca e dotado de peito arredondado. Pulmões fortes e firmes. Quando espirra faz o Pavarotti piar. A cachorrada entra uma pausa suspensiva. O manto do silêncio recai sobre a tarde. Tudo fica quieto. As almas alertam-se como se estivessem para ouvir as clarinadas do juízo final. Permaneço sempre no meu canto, aguardando o dono do espirro chegar. Quando chega e espirra, o barulho racha o calor da tarde, acaba com a modorra do dia, faz o contraponto ao canto do Pavarotti, enquadra o miar dos gatos, pincela com cores o berreiro desatinado dos cães e enche de humanidade a minha vida.
Cedido pelo autor
Autor(es)
Feres Sabino. Sérgio Roxo da Fonseca