Direito e moral
José Nedel
1 - Introdução
A relação entre direito e moral constitui uma das questões mais complexas da filosofia do direito. Não poucos são os nautas que, não estando bem metafisicamente apetrechados, naufragam nas imediações deste “Cabo Horn da ciência jurídica” (DEL VECCHIO, 1972, vol. lI, p. 90). Vale a pena, por isto, retomar a questão, não só fazendo dela um escorço histórico, m.as também examinando os argumentos mais conhecidos e apontando para uma solução. É assim que procederei, por passos.
2 - Desenvolvimento histórico do problema
2.1 - Na fase primitiva da vida social, vigia o costume indistinto, contendo normas de caráter misto: direito, moral, religião. O costume atávico e a tradição envolviam o indivíduo com toda a sua autoridade. Assim, entre os antigos egípcios, babilônios, chineses não se distinguia o direito da moral e da religião; o direito se confundia com os costumes sociais. A propósito afirmou Paulo Roubier: “Nas sociedades antigas, a severidade dos costumes e a coação religiosa permitiram obter espontaneamente o que o direito só conseguiu mais tarde, com muito trabalho” (Théorie qénérale du droit; apud GUSMÃO, 1986, p. 93).
2.2 - Na civilização grega, o direito ainda estava parcialmente confundido com a moral. A justiça era considerada sob o aspecto subjetivo, isto é, como virtude, a mais alta dentre elas. Ao Estado se atribuía fim ético, mais educativo do que jurídico. As normas estatais (direito positivo), bem como acontecia com as normas éticas, eram entendidas principalmente como conselhos para o reto viver, com o intuito de se atingir a felicidade.
2.3 - Em Roma, o direito adquiriu fisionomia própria, mas, sem ainda lograr teoria nítida sobre a sua distinção da moral. Todavia, os romanos já tiveram exata intuição dos limites do direito, a julgar de sua segura aplicação prática da lei. Forjaram expressões em que não aparece a distinção, como em honeste vivere (viver honestamente), fundamento de todo direito, que é antes um preceito moral. Celso definiu o direito como ars boni et aequi (arte do bem e do eqüitativo) , onde o bonum e o aequum são antes conceitos morais. Em outras expressões deles, porém, a distinção emerge, como nesta de Paulo: non omne quod licet honestum est (nem tudo o que é licito é honesto). E nestas outras: non videtur vim facere qui suo iure utitur (não parece praticar violência quem usa do seu direito); e nemo cogitationis poenam patitur (ninguém padece pena em virtude de pensamento). Estas formulações evidenciam que os romanos conheciam a natureza específica do direito.
2.4 - Na Patrística e na Escolástica, a moral assumiu formas jurídicas. É que o direito foi concebido como norma universal do operar, abrangendo a moral. Distinguia-se direito divino e humano; estrito e eqüitativo; perfeito e imperfeito. Como se vê, trata-se aqui de fenômeno inverso ao verificado na Grécia antiga, onde o direito estava absorvido pela moral, assumindo formas e caracteres morais (DEL VECCHIO, op. cit., vol. lI, p. 92-3). No período patrístico e no escolástico, também não havia ainda teoria precisa sobre a distinção entre direito e moral.
2.5 - Quem lançou os germens da separação entre direito e moral foi Hugo Grócio (1583-1645), ao propor a separação do direito natural, transformado em direito racional, da teologia. Segundo o holandês, o direito natural subsistiria mesmo que Deus não existisse ou que não cuidasse das coisas humanas (De iure belli ac pacis, proleg., parágr. 11).
2.6 - Cristiano Tomásio (1665-1729), com o propósito de traçar limites à autoridade do Estado, reivindicou liberdade religiosa e de consciência, então não raro arbitrariamente violada pela coação jurídica. Combateu a tortura e os processos contra bruxas, magos e herejes. É que o jurista ficou impressionado com a iniqüidade de tais processos, em que sc procurava adivinhar as intenções dos agentes, e se obtinha confissão por tortura. Nestas circunstâncias, reivindicou esfera própria de liberdade individual, no foro interno, inacessível à coação.
Em sua obra Fundamenta iuris naturae et gentium, propôs a divisão das normas de conduta e das ciências correspondentes em três espécies: ética, política e jurisprudência, todas com o mesmo fim - a felicidade do homem. A ética teria por princípio o honestum e trataria do foro interno, da vida interior, que é livre e incoercível; a política, o decorum, preceito prático de conveniência e utilidade; e a jurisprudência, o iustum, cuja máxima seria quod tibi non vis fieri, alteris ne feceris (não faças a outrem o que não queres que te façam a ti). Trata a jurisprudência, ou o direito, do foro externo, da vida exterior, coercível. Assim, a coercibilidade é considerada por Tomásio como nota específica do direito, cuja missão é, segundo ele, proteger contra a injustiça e restabelecer a ordem perturbada. Enquanto a moral e a política, que seguem o preceito quod vis, ut alii tibi faciant, tu ipsis facies (faz aos outros o que queres que eles te façam), pretendem que se atue positivamente, o direito só prescreve não ofender os outros. O objeto do direito, o justo, não está para Tomásio, incluído no bem moral.
Pelo visto, Cristiano Tomásio intuiu o ponto fundamental da questão, mas praticou exagero ao estabelecer, em face dos caracteres distintos da moral e do direito, sua onímoda separação.
2.7 - Emanuel Kant (1724-1804) seguiu Tomásio nesta matéria. Por sua vasta influência, emprestou à doutrina dele grande autoridade, por muito tempo. Exagerou, porém, o aspecto da exterioridade do direito. Postulou para os deveres jurídicos, reduzidos tão-só ao aspecto externo do operar, uma legislação externa, heterônoma; e para os morais, uma legislação interna, autônoma.
A legislação externa, jurídica, heterônoma, segundo o filósofo de Koenigsberg, regula a liberdade dos homens em suas ações externas, na vida comum com os outros. Trata-se de decisão de autoridade armada de coação, que se contenta com a mera legalidade, ou seja, a prestação exterior de obediência. Assim, o direito é o “conjunto das condições sob as quais a liberdade de cada um pode harmonizar-se com a liberdade dos demais, conforme uma lei geral da liberdade” (Fundamentação da metafísica dos costumes; apud BOBBIO, op. cit.).
A legislação interna, ética, autônoma, ainda segundo o mesmo filósofo, persegue a liberdade interior, a independência da atuação em face de todo impulso sensível. Domina esta legislação o imperativo categórico que deriva da razão: “age de tal modo que a máxima de teus atos possa valer como princípio de uma legislação universal” (ibid.), que exige moralidade, ou seja, realização do ato em razão do dever.
Em suma, para Kant, o direito, ao contrário da moral, é coercível e visa à ação externa, independente dos motivos. Trata-se, segundo Jorge DeI Vecchio, de uma “concepção mecânica do direito” (DEL VECCHIO, op. cit., vol. I, p. 177).
2.8 - João Gottlieb Fichte (1762-1814) aceita fundamentalmente a teoria do direito de Kant, tendo como supremo preceito jurídico o seguinte: “tenho que reconhecer em todos os casos a natureza livre fora de mim; isto é, tenho que limitar minha liberdade pela idéia da possibilidade da liberdade do outro” (Grundlage des Naturrechts nach Prinzipien der Wissenchaftslehre. IIl. 52; apud CATHREIN, 1950, p. 270). Segundo este princípio, é direito toda ação conciliável com igual liberdade dos demais. Fichte, porém, aprofundou a separação entre direito e moral, entendendo como contraditórios os respectivos princípios enformadores. O direito, segundo o filósofo, permite o que a moral proíbe, v. g., que o credor reduza à miséria o devedor; que o locatário despeje viúva com filhos mas sem recursos, mesmo durante o inverno. A lei moral freqüentemente proíbe o exercício de um direito, sem que este deixe de ser direito. Ela ordena categoricamente o dever, enquanto a lei jurídica só permite, nunca ordena que se exercite o direito. Direito e moral estão, pois, totalmente desligados um do outro.
Isto evidentemente não é assim. No direito público, v.g., é notório que a autoridade não pode deixar de exercer seus direitos (de legislar, de punir, de administrar), que, no mais, são também deveres, ou seja, direitos-deveres. Da mesma forma, na esfera privada há dever de exercer, v. g., o direito de conservar a vida e a saúde própria e a dos dependentes, pelos meios ordinários; de cumprir as tarefas profissionais, etc. É bem de ver que Fichte carece de distinguir o direito em si, bom, e seu exercício, que pode ser ilícito em determinadas circunstâncias. Para o ato ser bom, deve, mais do que não contrariar a ordem jurídica, também ser conforme a moral. Bonum ex integra causa (para que se realize o bem, tudo deve estar bem, contrariamente ao que acontece com o mal, que pode resultar de qualquer defeito). No uso do direito é preciso observar, além de outras virtudes, moderação, amor ao próximo, gratidão, eqüidade.
2.9 - Entre outros, sustentam a separação entre direito e moral E. R. Bierling (1841-1919) (Juristische Prinzipienlehre) e R. V. Scherer, que afirma: "Ethos e Direito estão fora de toda relação" (Handbuch des Kirchenrechts, 1885, I, 2; apud CATHREIN, op. cit., p. 272). É que, segundo o canonista, o direito, norma positiva, não atribui valor às reclamações contra a imoralidade de suas disposições.
Para o positivismo jurídico, a tese da separação entre direito e moral decorre de sua concepção básica. De efeito, se tudo o que o Estado estatui é direito, até a lei mais irracional e imoral tem pretensão de validade. Paradigma deste entendimento é Hans Kelsen (1881-1973), adversário feroz do jusnaturalismo, segundo o qual, “a questão das relações entre direito e moral não é uma questão sobre o conteúdo do direito, mas uma questão sobre a sua forma” (KELSEN, 1976, p. 103). Em conseqüência, a validade das normas jurídicas positivas não depende de sua correspondência com a ordem moral. “Uma ordem jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral” (ibid., p. 106). No mais, Kelsen não admite moral absoluta. Os valores éticos, para ele, são todos apenas relativos (ibid., p. 101).
2.10 - Aos poucos, porém, formou-se oposição ao exagerado separatismo entre moral e direito. Houve autores que procuraram reaproximar ambos os setores da ética, indicando-lhes os pontos comuns. Assim, v.g., Adolfo Trendelenburg (1802-1972) (Naturrecht auf dem Grunde der Eithik) e H. Ahrens (1807-1874) (Naturrecht oder Philosophie des Rechts' und des Staates).
2.11 - A Escola Histórica pretendeu unir ambas as ordens, a moral e a jurídica, mas não logrou evitar a contradição. Assim, v.g., Frederico Júlio Stahl (1802-1861), notável pela profundidade da meditação, que elaborou um sistema de caráter espiritualista e teocrático. Tentou restabelecer a relação entre direito e moral, mas seu intento não vingou. Segundo ele, o fundamento do direito está na ordem divina do mundo, tendo a ordem humana, obrigatória, por escopo conservar a ordem divina. Todavia, na prática, o direito pode contradizer a ordem a que deveria servir, sem perder sua força impositiva, separando-se, assim, da moral (Philosophie des Rechts, 1854; apud CATHREIN, op. cit., p. 135).
2.12 - Os neo-escolásticos sustentam que entre moral e direito há relação essencial: a ordem jurídica faz parte da ordem moral, à qual se subordina. Esta concepção, aliás, era comum até fins do século XVIII, mais precisamente, até o advento de Cristiano Tomásio e de seus epígonos.
3 - Fundamentação
3.1 - A ordem jurídica é parte essencial da ordem moral. Pertence à ordem moral toda atividade consciente e livre do homem: todos os direitos e deveres do homem para consigo próprio, os outros e Deus. A ordem jurídica só compreende os direitos e deveres em relação aos outros. Assim, todo ato injusto também é moralmente mau; não vice-versa, ou seja, nem todo ato imoral é também injusto ou injurídico. Integra a ordem moral tudo o que é necessário para que as ações livres do homem sejam boas e bem ordenadas. Destarte, são moralmente boas as ações em relação a si, aos outros e a Deus, que sejam conformes à natureza racional do homem, norma objetiva próxima da moralidade. Tendo em vista que o homem é social, a ordem jurídica, sem a qual a sociedade não subsistiria, é conveniente à natureza humana e, por isto, moralmente boa.
A ordem jurídica não só compreende o direito objetivo (norma agendi), ou seja, a norma obrigatória editada pelo Estado (lei em sentido formal) ou por ele acolhida (costume jurídico), mas também o direito subjetivo (facultas agendi), que dela emana e corresponde ao dever que surge no outro de respeitar o direito subjetivo. Ambos integram a ordem moral.
3.2 - Entre ambas as ordens não há separação, mas distinção parcial ou inadequada. Esta distinção pode ser visualizada sob vários pontos de vista, como direi a seguir.
3.2.1 - Quanto ao objeto. Os preceitos jurídicos se diferenciam dos outros deveres morais por seu objeto, que é o suum cuique tribuere, ou seja, o dar a cada um o que é dele. Assim sendo, a ordem jurídica compreende os direitos e deveres para com os outros. Mesmo entre os deveres para com os outros, nem todos são tornados jurídicos: v.g., deveres de caridade, de piedade, de gratidão, que remanescem corno deveres puramente morais.
3.2.2 - Quanto à extensão. Do que foi explicitado, emerge imediatamente que a ordem moral global é mais extensa que a ordem jurídica; esta, só representa urna parte daquela. O direito acolhe muitas regras morais, não todas: as regras principais para a convivência social. Neste sentido, Jorge Jellinek (1851-1911) afirmou que o direito é o “mínimo ético” (apud DEL VECCHIO, op. cit., vol. II, p. 102); e o próprio DeI Vecchio proclamou que o direito é a “coluna vertebral do corpo social ou do organismo ético" (ibid.).
Segundo Miguel Reale, a concepção do direito como mínimo ético provém de Jeremias Benthan (1748-1832) e consiste em dizer que “o direito representa apenas o mínimo de moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver” (REALE, 1977, p. 42). Segundo esta concepção, o direito não seria diverso da moral, mas parte dela, armada de garantias específicas. A relação entre ambos, direito e moral, pode ser representada, segundo esta concepção, por dois círculos concêntricos: o maior representa a moral; o menor, o direito.
Miguel Reale rejeita esta representação de círculos concêntricos e propõe a imagem de círculos secantes, para representar a concepção segundo a qual uma parte do direito coincide com a moral; e outra, não (ibid., p. 42-43). Segundo o justifilósofo brasileiro, fora do moral há o imoral e o amoral ou indiferente, como as regras de trânsito, regras ditadas, não por motivos de ordem moral, mas por razões puramente técnicas, de utilidade social. O direito, porém, não só tutela o amoral como também por vezes o imoral. Sempre há algum resíduo de imoralidade tutelado pelo direito; razão por que não pode ser representado como “mínimo ético”.
Hans Kelsen também rejeita a idéia de que uma regra de direito devesse conter um “mínimo moral” (KELSEN, 1976, p. 106).
A idéia de que o direito positivo não sanciona todos os preceitos morais não é nova. Já se encontra, com todas as letras, em Tomás de Aquino (1227-1274), que assim se expressa: “Pela lei humana não se proíbem todos os vícios dos quais se abstêm os virtuosos, só os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão abster-se e principalmente os que são em detrimento dos outros, sem cuja proibição a sociedade humana não poderia ser conservada” (S. Th. 1-2, 96, 2). E mais: “A lei humana não preceitua acerca de todos os atos de todas as virtudes, mas só daqueles que são ordenáveis ao bem comum” (S. Th., 1-2, 96, 3). Veja-se, também, a respeito, F. Suárez, De legibus ac Deo legislatore III, XII, II.
Este ensinamento clássico, entretanto, não coincide com o de Jellinek e outros sobre o mínimo ético. Em verdade, a representação do direito como mínimo ético não é adequada. O direito, de fato, nem sempre tutela sequer os direitos fundamentais da pessoa, como no caso do aborto, que não pune em determinadas hipóteses; nem sempre reage contra a mentira e a falsidade; nem sempre garante a igualdade formal de todos. É como disse Miguel Reale: sempre há algum resquício de imoralidade tutelado pelo direito. O direito é parte da moral, mas não precisamente o mínimo dela, tanto que sequer cogita do que pudesse ser representado como o mínimo da parte monástica da moral, que trata das obrigações do homem consigo mesmo e perante Deus.
Contudo, nem todos têm idéia clara a este respeito. Assim, v.g., Paulo Dourado de Gusmão, que defende ora que o direito é mais amplo que a moral (GUSMÃO, 1986, p. 96), ora que “a regra jurídica é a regra moral imposta mais energicamente, dotada de sanção exterior” (ibid., p. 94.) Vale dizer, que a regra jurídica é espécie de regra moral, e, sendo assim, a moral é mais ampla que o direito. Afirmações contraditórias.
Sustentar que a ordem jurídica é parte da ordem moral, importa incluir também no mundo ético, como determinações da lei natural a cargo da autoridade legítima, aqueles preceitos jurídicos editados por razões puramente técnicas e de utilidade social, que Miguel Reale entendeu de excluir da moral. Em verdade, é este o entendimento predominante, segundo o qual toda lei positiva justa obriga em consciência. Mesmo leis puramente penais que, segundo alguns, não obrigam a praticar o ato que prescrevem ou a omitir o que vedam, impõem dever de consciência de assumir as sanções decorrentes da infração. Assim sendo, toda a ordem jurídica integra a ordem moral, e não há uma parte dela que a exceda, como pensa o ilustre justifilósofo MigueI Reale. A representação das relações entre direito e moral não pode ser, pois, a de dois círculos concêntricos, um incluído no outro, nem a de círculos secantes, com dupla descoincidência parcial.
3.2.3 - Quanto ao fim. A moral visa ao fim último do homem; o direito, à ordem social. Em outras palavras, a função da moral é o aperfeiçoamento da pessoa como tal, a melhoria das relações entre as pessoas, a pressão sobre a vontade para se evitar o recurso à ultima ratio (razão ou argumento derradeiro) da coação. O direito tem função essencialmente protetora: garante as condições para a subsistência da sociedade.
Salta aos olhos que o homem, para alcançar livremente seu fim último, necessita de meios, entre os quais o direito. Por isto, a ordem jurídica, em relação ao restante da ordem moral, tem relação de meio a fim; é a parte subordinada da moral. Para que toda pessoa possa cumprir livremente sua missão, impõe-se delimitar as esferas de liberdades. Assim, a ordem jurídica, da qual procede tal delimitação, é meio de cumprimento dos deveres morais puros, para consigo, para com Deus, para com os outros.
3.2.4 - Quanto à denominação. Os atos jurídicos são ditos justos ou injustos, segundo se acomodam ou não à ordem social; e bons ou maus são denominados os atos morais, segundo são ou não conformes à natureza completa do homem. O conceito de bondade moral é mais amplo que o de justiça; esta é uma forma de bondade.
3.2.5 - Quanto à coação. O direito visa a estabelecer o limite ou a fronteira na atividade de vários sujeitos. Se Um deles ultrapassa os lindes, o outro pode repelir a invasão. A obrigação que corresponde ao direito é, por via de regra, suscetível de execução forçada, isto é, pode ser exigi da pela força - é coercível. (NEDEL, 1995, p. 61-74). O mesmo não acontece com os deveres puramente morais, que não podem ser urgidos pela força. O sujeito perante a norma ética é psicologicamente livre. O cumprimento do dever moral tem caráter meritório. A sanção pelo não cumprimento é o remorso, a opinião pública desfavorável, não a coação física. É esta peculiaridade que Gustavo Radbruch (1878-1949) tem em vista quando fala em “impotência física da moral” (RADBRUCH, 1974; p. 108).
Embora a coerção (censuras, advertências, castigos...) possa estar presente na origem psicogenética da consciência moral nas crianças, como pensa João Piaget (1896-1980) (ver GUSMÃO, op. cit., p. 95, nota 2), formada a consciência, pela coação não se logra mais na moral do que a mera observância exterior. Conduta coacta perde seu valor moral.
3.2.6 - Quanto à bilateralidade. A norma moral tem por destinatário o próprio sujeito. Quem preceitua dirige-se a quem deve atuar, mesmo que o comportamento deste tenha efeito sobre outros (v.g., no caso da esmola), aos quais não é destinada a norma. A moral impõe ao sujeito uma escolha entre ações que ele pode praticar: confronta atos diversos do mesmo sujeito - é unilateral. Só impõe deveres: não confere a outrem faculdade de exigir seu cumprimento. Por sua vez, o direito contém normas bilaterais e concatenadas: a uns cria possibilidade (poder fazer, exigir); a outros impõe necessidade (dever de prestar, de abster-se). O permitido a um não deve ser impedido pelo outro. Segundo Jorge DeI Vecchio, o campo do direito é o da coordenação ética objetiva, que se manifesta por uma série correlativa de possibilidades e de impossibilidades de conteúdo respeitante a vários sujeitos. Faculdade jurídica é poder de exigir algo de outros. O direito confronta atos diversos de vários sujeitos: coloca face a face ao menos dois sujeitos e a ambos fornece a norma de conduta. Em outras palavras, é intersubjetivo. O valer perante outros é da sua essência. Uma só determinação fixa a obrigação de um e a prestação do outro. A bilateralidade é a “pedra angular do edifício jurídico” (DEL VECCHIO, op. cit., vol. II, p. 98).
Tomás de Aquino, Rosmini e outros, inspirados em Aristóteles, falam da alteridade do direito; caráter que Dante Alighieri (1265-1321) ressaltou na sua definição de direito como “toda proporção real e pessoal de homem para homem -hominis ad hominem proportio - que, conservada, conserva a sociedade e, corrompida, a corrompe” (De monarchia; apud DEL VECCHIO, op. cit., vol. II, p. 98).
3.2.7 - Quanto à exterioridade. A moral parte do aspecto interior, psíquico: na consciência é que se dá a interferência das diversas possibilidades do operar, uma das quais é a escolhida; atende prevalentemente às intenções, à finalidade. Todavia, não deixa de abranger também o aspecto físico, exterior (v. g., proíbe a mutilação, o suicídio, o homicídio). Por sua vez, o direito parte do aspecto exterior: visa à ordem objetiva de coexistência, relativa ao aspecto externo das ações. No campo exterior é que se dá a interferência da conduta de vários sujeitos, nascendo a existência de limitação. Cuida prevalentemente da legitimidade extrínseca dos atos.
Evidentemente, a norma jurídica não regula a conduta dos homens em todas as suas relações com os outros; só manda atribuir-lhes o que é deles, independente de boa ou má intenção. Aliás, boa intenção não é devida aos outros (só é devida a si própria e a Deus). Por isso, a norma jurídica a não exige, ao menos não sempre. De mais a mais, a coação não incide na intenção, só na execução externa do ato. Contudo, as apreciações jurídicas passam rapidamente do aspecto exterior ao interior, pois o direito também se ocupa dos motivos, da intenção do agente, da boa fé, tanto no direito penal quanto no civil. A Escola da Exegese até insistia na necessidade de interpretar a lei de acordo com a intenção do legislador.
Em suma, o aspecto exterior no direito e o interior na moral não são exclusivos, mas só predominantes. Prevalentemente, a moral quer a vontade; o direito, a conduta. Díretamente, a lei jurídica só é violada pelo fato contrário a ela; só indiretamente, pela intenção contrária (v.g., intenção de matar, de cometer adultério). Na moral é diferente: viola-se a lei até pela intenção contrária, pois ante Deus a vontade vale pelo fato (S. Th. 2-2, 60, 3, 3).
Pelo visto, direito e moral abrangem o homem todo, no seu aspecto físico e espiritual. O direito, v.g., limita e tira a liberdade exterior, se for o caso; mas também impõe educação moral e religiosa. Por sua vez a moral proíbe maus pensamentos, mas também impõe cuidados com a saúde corporal. Ambos compreendem preceitos positivos e negativos, não sendo verdade que o direito se reduz ao neminem laedere, como afIrmavam Cristiano Tomásio e, mais tarde, Artur Schopenhauer (1788-1860).
A toda evidência, E. Kant exagerou o aspecto da exterioridade do direito. O próprio H. Kelsen, neokantiano convicto, criticou-lhe este lance, afirmando que tanto a moral quanto o direito determinam a conduta externa e a interna. Assim, a virtude moral da coragem não é só estado de alma de ausência de medo, mas também conduta externa condicionada por aquele estado. E na proibição do homicídio a lei penal não veda apenas a conduta externa de matar alguém, como igualmente a intenção de produzir tal resultado (KELSEN, op. cit., p. 95).
3.2.8 -Quanto à precisão de limites. O direito como linha limítrofe da liberdade, formulado em leis e códigos, é mais definido que a moral, que vive principalmente na consciência individual. As normas morais estão in corde sicriptae, ou seja, inscritas no coração, como ensina o Apóstolo São Paulo. (Rom 215). Na consciência social apresenta-se em estado amorfo e difuso. Talvez seja esta a razão por que cada qual pretende ser ótimo juiz de si, em questões morais; e dos outros, em questões de direito.
No mais, os limites entre direito e moral muitas vezes são ultrapassados, pois entre ambos há contínua osmose. O que era jurídico, pode passar a ser puro dever moral (v.g., não blasfemar, pagar dívida prescrita...). E o que era dever moral, pode passar a ser jurídico (v.g., obrigação de indenizar operário sinistrado).
3.2.9 - Quanto à heteronomia. Segundo E. Kant, o direito é imposto pelo poder, em virtude do que é heterônomo; ao passo que a moral provém da consciência, ou da razão pura prática, sendo por isto autônoma (BOBBIO, op. cit., p. ). A isto se diga que, a rigor, não é a consciência que impõe deveres, mas a lei (natural ou positiva) que nela se manifesta. A autonomia é, pois, relativa, pois existe tão-só no sentido de que aos outros cabe respeitar a opção ética de cada um, desde que esta não fira os bons costumes e o bem comum. Efetivamente, ninguém é autônomo para estabelecer para si uma ética particular legítima; tuas cada um é livre psicologicamente para aceitar ou não a moral natural comum, cujos princípios se manifestam em sua consciência. De fato, a consciência humana não é legisladora em matéria de moral. Cabe-lhe reconhecer e acolher a lei natural, reflexo da lei eterna divinamente legislada, na consciência humana. Sob este ponto de vista, também a moral é heterônoma.
4 - Conclusão
Em síntese, direito e moral são distintos, mas não separados. Há mesmo entre eles uma coincidência parcial. Em verdade, ambos são complementares. O direito por si só não é suficiente para dirigir o operar humano. Diz não impeditividade, possibilidade. Muita vez não aponta que ações juridicamente possíveis são as moralmente permitidas ou necessárias. Deve, pois, ser integrado e completado pela moral, à qual ele, aliás, não é indiferente. Se não impõe sempre o moral, invariavelmente o permite; e sempre se opõe ao que é imoral ou contrário aos bons costumes, segundo a consciência do homo medius, não segundo o entendimento sutil do moralista. Nunca impõe atos que a moral proíbe, embora às vezes os permita, ou não reaja contra sua prática (v. g., na hipótese de aborto sentimental) .
É de notar que as idéias morais e os institutos jurídicos se desenvolveram simultaneamente. A cada sistema de direito positivo corresponde análogo sistema de moral. Veja-se, v. g., o paralelismo entre a moral e o direito no Ocidente que adota o cristianismo, religião do amor, e nos países em que domina o “olho por olho, dente por dente”. As diferenças éticas e religiosas, que se projetam no direito, especialmente no direito penal, são enormes.
Em suma, como não se pode abarcar inteiramente a ordem moral sem referi-Ia à ordem jurídica, como parte dela; também se não pode compreender a ordem jurídica sem entrar no campo da moral. Aliás, o fim precípuo do direito é a justiça, que é uma virtude moral. E toda verdadeira lei jurídica é lei moral: pauta de um obrar obrigatório em consciência. De efeito, lei que não obrigasse em consciência, não seria verdadeira lei. A fonte e o fundamento da obrigação é a própria lei moral natural. A obediência às leis positivas é exigência dela, que carece de conclusões e determinações por parte da lei positiva. A observância de tais leis que, com sua vigência, passam a integrar a ordem moral, é necessária para a subsistência da sociedade. Esta doutrina, aliás, está consagrada na Escritura (Rom 13, 1-7) .
De tudo segue que a lei moral natural é o Iimite infranqueável pela lei positiva, ou pelo direito objetivo. Não tem força obrigatória lei positiva contrária à lei natural. Com efeito, a lei natural não poderia obrigar a obedecer a uma lei positiva contrária a ela. Os deveres resultantes de uma e outra seriam contraditórios. Lei jurídica não pode prescrever nada que seja por natureza imoral ou injusto (S. Th. 2-2, 57, 2, 2). De fato, não se devem considerar como direito as declarações malvadas dos homens (AGOSTINHO, De civitate Dei, I, 19, 21). Tais formulações teriam aspecto mas não conteúdo de lei. Norma jurídica injusta seria como ouro falso, nozes vazias, trovão sem chuva. De fato, norma jurídica só tem força de lei na medida em que propicia a realização da justiça, como ensina o Aquinate, verbis: in quantum habet de iustitia, in tantum habet de virtute legis (S. Th. 1-2, 95, 2) .
Como a justiça pertence à essência da lei, não pode haver um direito injusto. Tal só poderia ser imaginado por quem não leva em conta o conteúdo da regulação, como fazem, entre outros, R. Stammler (1856-1938), que tem o direito na conta de “regulação coercitiva válida da vida coletiva humana, inviolável conforme seu sentido” (Wirtschaft und Recht; apud CATHREIN, 1950, p. 284); e H. Kelsen, segundo o qual “uma norma jurídica pode ser considerada válida ainda que contrarie a ordem moral” (KELSEN, op. cit., p. 106). Tal pensamento, que pressupõe a total separação entre direito e moral, despoja os direitos e deveres jurídicos de todo caráter ético, com o que a ordem jurídica perde sua dignidade e nobreza, reduzida que fica a puras medidas coercitivas e policialescas. Decididamente, não é assim que deve ser encarado o mundo jurídico, integrante essencial que é do mundo ético, segundo a doutrina clássica, do bom senso, que, neste aspecto, é aqui reafirmada e defendida.
5 - Referências bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1984. CATHREIN, Víctor. Filosofía del derecho. 6. ed. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1950. . Philosophia moralis. Friburgi Brisg./Barcinone: Herder, 1955. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito, 2 vol. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1972. GUSMÁO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1976. NEDEL, José. Direito e coatividade. Cultura e Fé. P. Alegre, n. 68, p. 61-74, jan./mar. 1995. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1974. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 4. cd. S. Paulo: Saraiva , 1977. . Filosofia do direito. 2 vol. 7. ed. S. Paulo: Saraiva, 1975.
Revista Cultura e Fé, Porto Alegre: nº 69, abril-junho/1995,pp. 71-84
José Nedel
1 - Introdução
A relação entre direito e moral constitui uma das questões mais complexas da filosofia do direito. Não poucos são os nautas que, não estando bem metafisicamente apetrechados, naufragam nas imediações deste “Cabo Horn da ciência jurídica” (DEL VECCHIO, 1972, vol. lI, p. 90). Vale a pena, por isto, retomar a questão, não só fazendo dela um escorço histórico, m.as também examinando os argumentos mais conhecidos e apontando para uma solução. É assim que procederei, por passos.
2 - Desenvolvimento histórico do problema
2.1 - Na fase primitiva da vida social, vigia o costume indistinto, contendo normas de caráter misto: direito, moral, religião. O costume atávico e a tradição envolviam o indivíduo com toda a sua autoridade. Assim, entre os antigos egípcios, babilônios, chineses não se distinguia o direito da moral e da religião; o direito se confundia com os costumes sociais. A propósito afirmou Paulo Roubier: “Nas sociedades antigas, a severidade dos costumes e a coação religiosa permitiram obter espontaneamente o que o direito só conseguiu mais tarde, com muito trabalho” (Théorie qénérale du droit; apud GUSMÃO, 1986, p. 93).
2.2 - Na civilização grega, o direito ainda estava parcialmente confundido com a moral. A justiça era considerada sob o aspecto subjetivo, isto é, como virtude, a mais alta dentre elas. Ao Estado se atribuía fim ético, mais educativo do que jurídico. As normas estatais (direito positivo), bem como acontecia com as normas éticas, eram entendidas principalmente como conselhos para o reto viver, com o intuito de se atingir a felicidade.
2.3 - Em Roma, o direito adquiriu fisionomia própria, mas, sem ainda lograr teoria nítida sobre a sua distinção da moral. Todavia, os romanos já tiveram exata intuição dos limites do direito, a julgar de sua segura aplicação prática da lei. Forjaram expressões em que não aparece a distinção, como em honeste vivere (viver honestamente), fundamento de todo direito, que é antes um preceito moral. Celso definiu o direito como ars boni et aequi (arte do bem e do eqüitativo) , onde o bonum e o aequum são antes conceitos morais. Em outras expressões deles, porém, a distinção emerge, como nesta de Paulo: non omne quod licet honestum est (nem tudo o que é licito é honesto). E nestas outras: non videtur vim facere qui suo iure utitur (não parece praticar violência quem usa do seu direito); e nemo cogitationis poenam patitur (ninguém padece pena em virtude de pensamento). Estas formulações evidenciam que os romanos conheciam a natureza específica do direito.
2.4 - Na Patrística e na Escolástica, a moral assumiu formas jurídicas. É que o direito foi concebido como norma universal do operar, abrangendo a moral. Distinguia-se direito divino e humano; estrito e eqüitativo; perfeito e imperfeito. Como se vê, trata-se aqui de fenômeno inverso ao verificado na Grécia antiga, onde o direito estava absorvido pela moral, assumindo formas e caracteres morais (DEL VECCHIO, op. cit., vol. lI, p. 92-3). No período patrístico e no escolástico, também não havia ainda teoria precisa sobre a distinção entre direito e moral.
2.5 - Quem lançou os germens da separação entre direito e moral foi Hugo Grócio (1583-1645), ao propor a separação do direito natural, transformado em direito racional, da teologia. Segundo o holandês, o direito natural subsistiria mesmo que Deus não existisse ou que não cuidasse das coisas humanas (De iure belli ac pacis, proleg., parágr. 11).
2.6 - Cristiano Tomásio (1665-1729), com o propósito de traçar limites à autoridade do Estado, reivindicou liberdade religiosa e de consciência, então não raro arbitrariamente violada pela coação jurídica. Combateu a tortura e os processos contra bruxas, magos e herejes. É que o jurista ficou impressionado com a iniqüidade de tais processos, em que sc procurava adivinhar as intenções dos agentes, e se obtinha confissão por tortura. Nestas circunstâncias, reivindicou esfera própria de liberdade individual, no foro interno, inacessível à coação.
Em sua obra Fundamenta iuris naturae et gentium, propôs a divisão das normas de conduta e das ciências correspondentes em três espécies: ética, política e jurisprudência, todas com o mesmo fim - a felicidade do homem. A ética teria por princípio o honestum e trataria do foro interno, da vida interior, que é livre e incoercível; a política, o decorum, preceito prático de conveniência e utilidade; e a jurisprudência, o iustum, cuja máxima seria quod tibi non vis fieri, alteris ne feceris (não faças a outrem o que não queres que te façam a ti). Trata a jurisprudência, ou o direito, do foro externo, da vida exterior, coercível. Assim, a coercibilidade é considerada por Tomásio como nota específica do direito, cuja missão é, segundo ele, proteger contra a injustiça e restabelecer a ordem perturbada. Enquanto a moral e a política, que seguem o preceito quod vis, ut alii tibi faciant, tu ipsis facies (faz aos outros o que queres que eles te façam), pretendem que se atue positivamente, o direito só prescreve não ofender os outros. O objeto do direito, o justo, não está para Tomásio, incluído no bem moral.
Pelo visto, Cristiano Tomásio intuiu o ponto fundamental da questão, mas praticou exagero ao estabelecer, em face dos caracteres distintos da moral e do direito, sua onímoda separação.
2.7 - Emanuel Kant (1724-1804) seguiu Tomásio nesta matéria. Por sua vasta influência, emprestou à doutrina dele grande autoridade, por muito tempo. Exagerou, porém, o aspecto da exterioridade do direito. Postulou para os deveres jurídicos, reduzidos tão-só ao aspecto externo do operar, uma legislação externa, heterônoma; e para os morais, uma legislação interna, autônoma.
A legislação externa, jurídica, heterônoma, segundo o filósofo de Koenigsberg, regula a liberdade dos homens em suas ações externas, na vida comum com os outros. Trata-se de decisão de autoridade armada de coação, que se contenta com a mera legalidade, ou seja, a prestação exterior de obediência. Assim, o direito é o “conjunto das condições sob as quais a liberdade de cada um pode harmonizar-se com a liberdade dos demais, conforme uma lei geral da liberdade” (Fundamentação da metafísica dos costumes; apud BOBBIO, op. cit.).
A legislação interna, ética, autônoma, ainda segundo o mesmo filósofo, persegue a liberdade interior, a independência da atuação em face de todo impulso sensível. Domina esta legislação o imperativo categórico que deriva da razão: “age de tal modo que a máxima de teus atos possa valer como princípio de uma legislação universal” (ibid.), que exige moralidade, ou seja, realização do ato em razão do dever.
Em suma, para Kant, o direito, ao contrário da moral, é coercível e visa à ação externa, independente dos motivos. Trata-se, segundo Jorge DeI Vecchio, de uma “concepção mecânica do direito” (DEL VECCHIO, op. cit., vol. I, p. 177).
2.8 - João Gottlieb Fichte (1762-1814) aceita fundamentalmente a teoria do direito de Kant, tendo como supremo preceito jurídico o seguinte: “tenho que reconhecer em todos os casos a natureza livre fora de mim; isto é, tenho que limitar minha liberdade pela idéia da possibilidade da liberdade do outro” (Grundlage des Naturrechts nach Prinzipien der Wissenchaftslehre. IIl. 52; apud CATHREIN, 1950, p. 270). Segundo este princípio, é direito toda ação conciliável com igual liberdade dos demais. Fichte, porém, aprofundou a separação entre direito e moral, entendendo como contraditórios os respectivos princípios enformadores. O direito, segundo o filósofo, permite o que a moral proíbe, v. g., que o credor reduza à miséria o devedor; que o locatário despeje viúva com filhos mas sem recursos, mesmo durante o inverno. A lei moral freqüentemente proíbe o exercício de um direito, sem que este deixe de ser direito. Ela ordena categoricamente o dever, enquanto a lei jurídica só permite, nunca ordena que se exercite o direito. Direito e moral estão, pois, totalmente desligados um do outro.
Isto evidentemente não é assim. No direito público, v.g., é notório que a autoridade não pode deixar de exercer seus direitos (de legislar, de punir, de administrar), que, no mais, são também deveres, ou seja, direitos-deveres. Da mesma forma, na esfera privada há dever de exercer, v. g., o direito de conservar a vida e a saúde própria e a dos dependentes, pelos meios ordinários; de cumprir as tarefas profissionais, etc. É bem de ver que Fichte carece de distinguir o direito em si, bom, e seu exercício, que pode ser ilícito em determinadas circunstâncias. Para o ato ser bom, deve, mais do que não contrariar a ordem jurídica, também ser conforme a moral. Bonum ex integra causa (para que se realize o bem, tudo deve estar bem, contrariamente ao que acontece com o mal, que pode resultar de qualquer defeito). No uso do direito é preciso observar, além de outras virtudes, moderação, amor ao próximo, gratidão, eqüidade.
2.9 - Entre outros, sustentam a separação entre direito e moral E. R. Bierling (1841-1919) (Juristische Prinzipienlehre) e R. V. Scherer, que afirma: "Ethos e Direito estão fora de toda relação" (Handbuch des Kirchenrechts, 1885, I, 2; apud CATHREIN, op. cit., p. 272). É que, segundo o canonista, o direito, norma positiva, não atribui valor às reclamações contra a imoralidade de suas disposições.
Para o positivismo jurídico, a tese da separação entre direito e moral decorre de sua concepção básica. De efeito, se tudo o que o Estado estatui é direito, até a lei mais irracional e imoral tem pretensão de validade. Paradigma deste entendimento é Hans Kelsen (1881-1973), adversário feroz do jusnaturalismo, segundo o qual, “a questão das relações entre direito e moral não é uma questão sobre o conteúdo do direito, mas uma questão sobre a sua forma” (KELSEN, 1976, p. 103). Em conseqüência, a validade das normas jurídicas positivas não depende de sua correspondência com a ordem moral. “Uma ordem jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral” (ibid., p. 106). No mais, Kelsen não admite moral absoluta. Os valores éticos, para ele, são todos apenas relativos (ibid., p. 101).
2.10 - Aos poucos, porém, formou-se oposição ao exagerado separatismo entre moral e direito. Houve autores que procuraram reaproximar ambos os setores da ética, indicando-lhes os pontos comuns. Assim, v.g., Adolfo Trendelenburg (1802-1972) (Naturrecht auf dem Grunde der Eithik) e H. Ahrens (1807-1874) (Naturrecht oder Philosophie des Rechts' und des Staates).
2.11 - A Escola Histórica pretendeu unir ambas as ordens, a moral e a jurídica, mas não logrou evitar a contradição. Assim, v.g., Frederico Júlio Stahl (1802-1861), notável pela profundidade da meditação, que elaborou um sistema de caráter espiritualista e teocrático. Tentou restabelecer a relação entre direito e moral, mas seu intento não vingou. Segundo ele, o fundamento do direito está na ordem divina do mundo, tendo a ordem humana, obrigatória, por escopo conservar a ordem divina. Todavia, na prática, o direito pode contradizer a ordem a que deveria servir, sem perder sua força impositiva, separando-se, assim, da moral (Philosophie des Rechts, 1854; apud CATHREIN, op. cit., p. 135).
2.12 - Os neo-escolásticos sustentam que entre moral e direito há relação essencial: a ordem jurídica faz parte da ordem moral, à qual se subordina. Esta concepção, aliás, era comum até fins do século XVIII, mais precisamente, até o advento de Cristiano Tomásio e de seus epígonos.
3 - Fundamentação
3.1 - A ordem jurídica é parte essencial da ordem moral. Pertence à ordem moral toda atividade consciente e livre do homem: todos os direitos e deveres do homem para consigo próprio, os outros e Deus. A ordem jurídica só compreende os direitos e deveres em relação aos outros. Assim, todo ato injusto também é moralmente mau; não vice-versa, ou seja, nem todo ato imoral é também injusto ou injurídico. Integra a ordem moral tudo o que é necessário para que as ações livres do homem sejam boas e bem ordenadas. Destarte, são moralmente boas as ações em relação a si, aos outros e a Deus, que sejam conformes à natureza racional do homem, norma objetiva próxima da moralidade. Tendo em vista que o homem é social, a ordem jurídica, sem a qual a sociedade não subsistiria, é conveniente à natureza humana e, por isto, moralmente boa.
A ordem jurídica não só compreende o direito objetivo (norma agendi), ou seja, a norma obrigatória editada pelo Estado (lei em sentido formal) ou por ele acolhida (costume jurídico), mas também o direito subjetivo (facultas agendi), que dela emana e corresponde ao dever que surge no outro de respeitar o direito subjetivo. Ambos integram a ordem moral.
3.2 - Entre ambas as ordens não há separação, mas distinção parcial ou inadequada. Esta distinção pode ser visualizada sob vários pontos de vista, como direi a seguir.
3.2.1 - Quanto ao objeto. Os preceitos jurídicos se diferenciam dos outros deveres morais por seu objeto, que é o suum cuique tribuere, ou seja, o dar a cada um o que é dele. Assim sendo, a ordem jurídica compreende os direitos e deveres para com os outros. Mesmo entre os deveres para com os outros, nem todos são tornados jurídicos: v.g., deveres de caridade, de piedade, de gratidão, que remanescem corno deveres puramente morais.
3.2.2 - Quanto à extensão. Do que foi explicitado, emerge imediatamente que a ordem moral global é mais extensa que a ordem jurídica; esta, só representa urna parte daquela. O direito acolhe muitas regras morais, não todas: as regras principais para a convivência social. Neste sentido, Jorge Jellinek (1851-1911) afirmou que o direito é o “mínimo ético” (apud DEL VECCHIO, op. cit., vol. II, p. 102); e o próprio DeI Vecchio proclamou que o direito é a “coluna vertebral do corpo social ou do organismo ético" (ibid.).
Segundo Miguel Reale, a concepção do direito como mínimo ético provém de Jeremias Benthan (1748-1832) e consiste em dizer que “o direito representa apenas o mínimo de moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver” (REALE, 1977, p. 42). Segundo esta concepção, o direito não seria diverso da moral, mas parte dela, armada de garantias específicas. A relação entre ambos, direito e moral, pode ser representada, segundo esta concepção, por dois círculos concêntricos: o maior representa a moral; o menor, o direito.
Miguel Reale rejeita esta representação de círculos concêntricos e propõe a imagem de círculos secantes, para representar a concepção segundo a qual uma parte do direito coincide com a moral; e outra, não (ibid., p. 42-43). Segundo o justifilósofo brasileiro, fora do moral há o imoral e o amoral ou indiferente, como as regras de trânsito, regras ditadas, não por motivos de ordem moral, mas por razões puramente técnicas, de utilidade social. O direito, porém, não só tutela o amoral como também por vezes o imoral. Sempre há algum resíduo de imoralidade tutelado pelo direito; razão por que não pode ser representado como “mínimo ético”.
Hans Kelsen também rejeita a idéia de que uma regra de direito devesse conter um “mínimo moral” (KELSEN, 1976, p. 106).
A idéia de que o direito positivo não sanciona todos os preceitos morais não é nova. Já se encontra, com todas as letras, em Tomás de Aquino (1227-1274), que assim se expressa: “Pela lei humana não se proíbem todos os vícios dos quais se abstêm os virtuosos, só os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão abster-se e principalmente os que são em detrimento dos outros, sem cuja proibição a sociedade humana não poderia ser conservada” (S. Th. 1-2, 96, 2). E mais: “A lei humana não preceitua acerca de todos os atos de todas as virtudes, mas só daqueles que são ordenáveis ao bem comum” (S. Th., 1-2, 96, 3). Veja-se, também, a respeito, F. Suárez, De legibus ac Deo legislatore III, XII, II.
Este ensinamento clássico, entretanto, não coincide com o de Jellinek e outros sobre o mínimo ético. Em verdade, a representação do direito como mínimo ético não é adequada. O direito, de fato, nem sempre tutela sequer os direitos fundamentais da pessoa, como no caso do aborto, que não pune em determinadas hipóteses; nem sempre reage contra a mentira e a falsidade; nem sempre garante a igualdade formal de todos. É como disse Miguel Reale: sempre há algum resquício de imoralidade tutelado pelo direito. O direito é parte da moral, mas não precisamente o mínimo dela, tanto que sequer cogita do que pudesse ser representado como o mínimo da parte monástica da moral, que trata das obrigações do homem consigo mesmo e perante Deus.
Contudo, nem todos têm idéia clara a este respeito. Assim, v.g., Paulo Dourado de Gusmão, que defende ora que o direito é mais amplo que a moral (GUSMÃO, 1986, p. 96), ora que “a regra jurídica é a regra moral imposta mais energicamente, dotada de sanção exterior” (ibid., p. 94.) Vale dizer, que a regra jurídica é espécie de regra moral, e, sendo assim, a moral é mais ampla que o direito. Afirmações contraditórias.
Sustentar que a ordem jurídica é parte da ordem moral, importa incluir também no mundo ético, como determinações da lei natural a cargo da autoridade legítima, aqueles preceitos jurídicos editados por razões puramente técnicas e de utilidade social, que Miguel Reale entendeu de excluir da moral. Em verdade, é este o entendimento predominante, segundo o qual toda lei positiva justa obriga em consciência. Mesmo leis puramente penais que, segundo alguns, não obrigam a praticar o ato que prescrevem ou a omitir o que vedam, impõem dever de consciência de assumir as sanções decorrentes da infração. Assim sendo, toda a ordem jurídica integra a ordem moral, e não há uma parte dela que a exceda, como pensa o ilustre justifilósofo MigueI Reale. A representação das relações entre direito e moral não pode ser, pois, a de dois círculos concêntricos, um incluído no outro, nem a de círculos secantes, com dupla descoincidência parcial.
3.2.3 - Quanto ao fim. A moral visa ao fim último do homem; o direito, à ordem social. Em outras palavras, a função da moral é o aperfeiçoamento da pessoa como tal, a melhoria das relações entre as pessoas, a pressão sobre a vontade para se evitar o recurso à ultima ratio (razão ou argumento derradeiro) da coação. O direito tem função essencialmente protetora: garante as condições para a subsistência da sociedade.
Salta aos olhos que o homem, para alcançar livremente seu fim último, necessita de meios, entre os quais o direito. Por isto, a ordem jurídica, em relação ao restante da ordem moral, tem relação de meio a fim; é a parte subordinada da moral. Para que toda pessoa possa cumprir livremente sua missão, impõe-se delimitar as esferas de liberdades. Assim, a ordem jurídica, da qual procede tal delimitação, é meio de cumprimento dos deveres morais puros, para consigo, para com Deus, para com os outros.
3.2.4 - Quanto à denominação. Os atos jurídicos são ditos justos ou injustos, segundo se acomodam ou não à ordem social; e bons ou maus são denominados os atos morais, segundo são ou não conformes à natureza completa do homem. O conceito de bondade moral é mais amplo que o de justiça; esta é uma forma de bondade.
3.2.5 - Quanto à coação. O direito visa a estabelecer o limite ou a fronteira na atividade de vários sujeitos. Se Um deles ultrapassa os lindes, o outro pode repelir a invasão. A obrigação que corresponde ao direito é, por via de regra, suscetível de execução forçada, isto é, pode ser exigi da pela força - é coercível. (NEDEL, 1995, p. 61-74). O mesmo não acontece com os deveres puramente morais, que não podem ser urgidos pela força. O sujeito perante a norma ética é psicologicamente livre. O cumprimento do dever moral tem caráter meritório. A sanção pelo não cumprimento é o remorso, a opinião pública desfavorável, não a coação física. É esta peculiaridade que Gustavo Radbruch (1878-1949) tem em vista quando fala em “impotência física da moral” (RADBRUCH, 1974; p. 108).
Embora a coerção (censuras, advertências, castigos...) possa estar presente na origem psicogenética da consciência moral nas crianças, como pensa João Piaget (1896-1980) (ver GUSMÃO, op. cit., p. 95, nota 2), formada a consciência, pela coação não se logra mais na moral do que a mera observância exterior. Conduta coacta perde seu valor moral.
3.2.6 - Quanto à bilateralidade. A norma moral tem por destinatário o próprio sujeito. Quem preceitua dirige-se a quem deve atuar, mesmo que o comportamento deste tenha efeito sobre outros (v.g., no caso da esmola), aos quais não é destinada a norma. A moral impõe ao sujeito uma escolha entre ações que ele pode praticar: confronta atos diversos do mesmo sujeito - é unilateral. Só impõe deveres: não confere a outrem faculdade de exigir seu cumprimento. Por sua vez, o direito contém normas bilaterais e concatenadas: a uns cria possibilidade (poder fazer, exigir); a outros impõe necessidade (dever de prestar, de abster-se). O permitido a um não deve ser impedido pelo outro. Segundo Jorge DeI Vecchio, o campo do direito é o da coordenação ética objetiva, que se manifesta por uma série correlativa de possibilidades e de impossibilidades de conteúdo respeitante a vários sujeitos. Faculdade jurídica é poder de exigir algo de outros. O direito confronta atos diversos de vários sujeitos: coloca face a face ao menos dois sujeitos e a ambos fornece a norma de conduta. Em outras palavras, é intersubjetivo. O valer perante outros é da sua essência. Uma só determinação fixa a obrigação de um e a prestação do outro. A bilateralidade é a “pedra angular do edifício jurídico” (DEL VECCHIO, op. cit., vol. II, p. 98).
Tomás de Aquino, Rosmini e outros, inspirados em Aristóteles, falam da alteridade do direito; caráter que Dante Alighieri (1265-1321) ressaltou na sua definição de direito como “toda proporção real e pessoal de homem para homem -hominis ad hominem proportio - que, conservada, conserva a sociedade e, corrompida, a corrompe” (De monarchia; apud DEL VECCHIO, op. cit., vol. II, p. 98).
3.2.7 - Quanto à exterioridade. A moral parte do aspecto interior, psíquico: na consciência é que se dá a interferência das diversas possibilidades do operar, uma das quais é a escolhida; atende prevalentemente às intenções, à finalidade. Todavia, não deixa de abranger também o aspecto físico, exterior (v. g., proíbe a mutilação, o suicídio, o homicídio). Por sua vez, o direito parte do aspecto exterior: visa à ordem objetiva de coexistência, relativa ao aspecto externo das ações. No campo exterior é que se dá a interferência da conduta de vários sujeitos, nascendo a existência de limitação. Cuida prevalentemente da legitimidade extrínseca dos atos.
Evidentemente, a norma jurídica não regula a conduta dos homens em todas as suas relações com os outros; só manda atribuir-lhes o que é deles, independente de boa ou má intenção. Aliás, boa intenção não é devida aos outros (só é devida a si própria e a Deus). Por isso, a norma jurídica a não exige, ao menos não sempre. De mais a mais, a coação não incide na intenção, só na execução externa do ato. Contudo, as apreciações jurídicas passam rapidamente do aspecto exterior ao interior, pois o direito também se ocupa dos motivos, da intenção do agente, da boa fé, tanto no direito penal quanto no civil. A Escola da Exegese até insistia na necessidade de interpretar a lei de acordo com a intenção do legislador.
Em suma, o aspecto exterior no direito e o interior na moral não são exclusivos, mas só predominantes. Prevalentemente, a moral quer a vontade; o direito, a conduta. Díretamente, a lei jurídica só é violada pelo fato contrário a ela; só indiretamente, pela intenção contrária (v.g., intenção de matar, de cometer adultério). Na moral é diferente: viola-se a lei até pela intenção contrária, pois ante Deus a vontade vale pelo fato (S. Th. 2-2, 60, 3, 3).
Pelo visto, direito e moral abrangem o homem todo, no seu aspecto físico e espiritual. O direito, v.g., limita e tira a liberdade exterior, se for o caso; mas também impõe educação moral e religiosa. Por sua vez a moral proíbe maus pensamentos, mas também impõe cuidados com a saúde corporal. Ambos compreendem preceitos positivos e negativos, não sendo verdade que o direito se reduz ao neminem laedere, como afIrmavam Cristiano Tomásio e, mais tarde, Artur Schopenhauer (1788-1860).
A toda evidência, E. Kant exagerou o aspecto da exterioridade do direito. O próprio H. Kelsen, neokantiano convicto, criticou-lhe este lance, afirmando que tanto a moral quanto o direito determinam a conduta externa e a interna. Assim, a virtude moral da coragem não é só estado de alma de ausência de medo, mas também conduta externa condicionada por aquele estado. E na proibição do homicídio a lei penal não veda apenas a conduta externa de matar alguém, como igualmente a intenção de produzir tal resultado (KELSEN, op. cit., p. 95).
3.2.8 -Quanto à precisão de limites. O direito como linha limítrofe da liberdade, formulado em leis e códigos, é mais definido que a moral, que vive principalmente na consciência individual. As normas morais estão in corde sicriptae, ou seja, inscritas no coração, como ensina o Apóstolo São Paulo. (Rom 215). Na consciência social apresenta-se em estado amorfo e difuso. Talvez seja esta a razão por que cada qual pretende ser ótimo juiz de si, em questões morais; e dos outros, em questões de direito.
No mais, os limites entre direito e moral muitas vezes são ultrapassados, pois entre ambos há contínua osmose. O que era jurídico, pode passar a ser puro dever moral (v.g., não blasfemar, pagar dívida prescrita...). E o que era dever moral, pode passar a ser jurídico (v.g., obrigação de indenizar operário sinistrado).
3.2.9 - Quanto à heteronomia. Segundo E. Kant, o direito é imposto pelo poder, em virtude do que é heterônomo; ao passo que a moral provém da consciência, ou da razão pura prática, sendo por isto autônoma (BOBBIO, op. cit., p. ). A isto se diga que, a rigor, não é a consciência que impõe deveres, mas a lei (natural ou positiva) que nela se manifesta. A autonomia é, pois, relativa, pois existe tão-só no sentido de que aos outros cabe respeitar a opção ética de cada um, desde que esta não fira os bons costumes e o bem comum. Efetivamente, ninguém é autônomo para estabelecer para si uma ética particular legítima; tuas cada um é livre psicologicamente para aceitar ou não a moral natural comum, cujos princípios se manifestam em sua consciência. De fato, a consciência humana não é legisladora em matéria de moral. Cabe-lhe reconhecer e acolher a lei natural, reflexo da lei eterna divinamente legislada, na consciência humana. Sob este ponto de vista, também a moral é heterônoma.
4 - Conclusão
Em síntese, direito e moral são distintos, mas não separados. Há mesmo entre eles uma coincidência parcial. Em verdade, ambos são complementares. O direito por si só não é suficiente para dirigir o operar humano. Diz não impeditividade, possibilidade. Muita vez não aponta que ações juridicamente possíveis são as moralmente permitidas ou necessárias. Deve, pois, ser integrado e completado pela moral, à qual ele, aliás, não é indiferente. Se não impõe sempre o moral, invariavelmente o permite; e sempre se opõe ao que é imoral ou contrário aos bons costumes, segundo a consciência do homo medius, não segundo o entendimento sutil do moralista. Nunca impõe atos que a moral proíbe, embora às vezes os permita, ou não reaja contra sua prática (v. g., na hipótese de aborto sentimental) .
É de notar que as idéias morais e os institutos jurídicos se desenvolveram simultaneamente. A cada sistema de direito positivo corresponde análogo sistema de moral. Veja-se, v. g., o paralelismo entre a moral e o direito no Ocidente que adota o cristianismo, religião do amor, e nos países em que domina o “olho por olho, dente por dente”. As diferenças éticas e religiosas, que se projetam no direito, especialmente no direito penal, são enormes.
Em suma, como não se pode abarcar inteiramente a ordem moral sem referi-Ia à ordem jurídica, como parte dela; também se não pode compreender a ordem jurídica sem entrar no campo da moral. Aliás, o fim precípuo do direito é a justiça, que é uma virtude moral. E toda verdadeira lei jurídica é lei moral: pauta de um obrar obrigatório em consciência. De efeito, lei que não obrigasse em consciência, não seria verdadeira lei. A fonte e o fundamento da obrigação é a própria lei moral natural. A obediência às leis positivas é exigência dela, que carece de conclusões e determinações por parte da lei positiva. A observância de tais leis que, com sua vigência, passam a integrar a ordem moral, é necessária para a subsistência da sociedade. Esta doutrina, aliás, está consagrada na Escritura (Rom 13, 1-7) .
De tudo segue que a lei moral natural é o Iimite infranqueável pela lei positiva, ou pelo direito objetivo. Não tem força obrigatória lei positiva contrária à lei natural. Com efeito, a lei natural não poderia obrigar a obedecer a uma lei positiva contrária a ela. Os deveres resultantes de uma e outra seriam contraditórios. Lei jurídica não pode prescrever nada que seja por natureza imoral ou injusto (S. Th. 2-2, 57, 2, 2). De fato, não se devem considerar como direito as declarações malvadas dos homens (AGOSTINHO, De civitate Dei, I, 19, 21). Tais formulações teriam aspecto mas não conteúdo de lei. Norma jurídica injusta seria como ouro falso, nozes vazias, trovão sem chuva. De fato, norma jurídica só tem força de lei na medida em que propicia a realização da justiça, como ensina o Aquinate, verbis: in quantum habet de iustitia, in tantum habet de virtute legis (S. Th. 1-2, 95, 2) .
Como a justiça pertence à essência da lei, não pode haver um direito injusto. Tal só poderia ser imaginado por quem não leva em conta o conteúdo da regulação, como fazem, entre outros, R. Stammler (1856-1938), que tem o direito na conta de “regulação coercitiva válida da vida coletiva humana, inviolável conforme seu sentido” (Wirtschaft und Recht; apud CATHREIN, 1950, p. 284); e H. Kelsen, segundo o qual “uma norma jurídica pode ser considerada válida ainda que contrarie a ordem moral” (KELSEN, op. cit., p. 106). Tal pensamento, que pressupõe a total separação entre direito e moral, despoja os direitos e deveres jurídicos de todo caráter ético, com o que a ordem jurídica perde sua dignidade e nobreza, reduzida que fica a puras medidas coercitivas e policialescas. Decididamente, não é assim que deve ser encarado o mundo jurídico, integrante essencial que é do mundo ético, segundo a doutrina clássica, do bom senso, que, neste aspecto, é aqui reafirmada e defendida.
5 - Referências bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1984. CATHREIN, Víctor. Filosofía del derecho. 6. ed. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1950. . Philosophia moralis. Friburgi Brisg./Barcinone: Herder, 1955. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito, 2 vol. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1972. GUSMÁO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1976. NEDEL, José. Direito e coatividade. Cultura e Fé. P. Alegre, n. 68, p. 61-74, jan./mar. 1995. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1974. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 4. cd. S. Paulo: Saraiva , 1977. . Filosofia do direito. 2 vol. 7. ed. S. Paulo: Saraiva, 1975.
Revista Cultura e Fé, Porto Alegre: nº 69, abril-junho/1995,pp. 71-84