POR QUE A TÉCNICA MODERNA É UM OBJETO DA ÉTICA
Tradução: Oswaldo Giacoia Junior Departamento de Filosofia IFCH/Unicamp.
Resumo: O principal objetivo deste texto é apresentar os aspectos centrais das teses de Hans Jonas a respeito da tecnologia como objeto da ética.
Abstract: The main aim of this article is to expound certain central aspects of Hans Jonas’ thesis concerning to technology as a subjcet of ethics.
“Que, expresso de modo geral, a Ética tem algo a dizer em assuntos da técnica, ou que a técnica se subordina a considerações éticas, decorre do simples fato de que a técnica é um exercício do poder humano, isto é, uma forma do agir e todo agir humano está exposto à prova moral. Do mesmo modo, é uma trivialidade que um e o mesmo poder se deixa utilizar tanto para o bem quanto para o mal e que se pode observar ou ferir normas éticas por ocasião de seu exercício. Como poder humano imensamente intensificado, a técnica se subsume inequivocamente nessa verdade geral. Todavia, constitui ela um caso particular, que exige um esforço do pensamento ético, diferente daquele apropriado para qualquer ação humana, esforço que era o suficiente para todas as espécies dessa ação no passado? Minha tese é que, de fato, a técnica moderna constitui um caso novo e particular e gostaria de indicar cinco dos motivos para isso que me impressionam particularmente.
Em geral, toda capacidade ‘como tal’ ou ‘em si’ é boa e se torna má pelo mau uso. Por exemplo, é inegavelmente bom ter o poder da palavra, mas é mau utilizá-lo para enganar os outros ou para desencaminha-los para sua própria ruína. Porisso é totalmente sensato ordenar: Usa esse poder, aumenta-o, mas não faças mau uso dele. Está pressuposto aqui que a ética pode diferenciar claramente entre ambos, entre o emprego correto e o falso de uma e mesma capacidade. Mas como ficam as coisas quando nos movemos em um contexto de ação no qual toda utilização relevante da aptidão, mesmo que empreendida com bom propósito, traz consigo um sentido de direção com efeitos que se intensificam, maus efeitos, finalmente, inseparáveis dos almejados e próximos ‘bons’ efeitos, talvez suplantando-os de muito, ao final? Se este devesse ser o caso da técnica moderna – como temos bons motivos para admití-lo – então a questão da utilização moral ou imoral de seus poderes não é mais um assunto de diferenciação auto-evidente, qualitativa, nem sequer coisa de propósitos, senão que se perde no jardim de erros das conjecturas quantitativas sobre conseqüências últimas e tem que tornar sua resposta dependente do caráter aproximativo dessas conjecturas. A dificuldade é: não somente quando a técnica é perfidamente mal-empregada, isto é, para maus fins, porém mesmo quando é benéficamente empregada para seus autênticos e altamente legítimos fins, ela tem em si um lado ameaçador, que, a longo prazo, poderia ter a última palavra. E o caráter de longo prazo está de algum modo embutido no fazer técnico. Por meio de sua dinâmica interna, que a impele para a frente, recusa-se à técnica o espaço de liberdade da neutralidade ética, no qual temos que nos preocupar apenas com capacidade de rendimento. O risco do ‘demasiado’ está sempre presente na condição pela qual o inato germe do ‘mau’, isto é, do danoso é co-alimentado e conduzido ao amadurecimento pecisamente por meio do levar avante o ‘bom’, isto é, o proveitoso. O perigo reside mais no sucesso que no fracasso – e o sucesso é decerto necessário, sob a pressão das carências humanas. Uma adequada ética da técnica tem que se ocupar com essa interna equivocidade do fazer técnico.
Em geral, a posse de uma capacidade ou poder (por indivíduos ou grupos) não significa ainda sua utização. Ela pode arbitrariamente permanecer em repouso por longo tempo para, ocasionalmente, segundo o desejo e depois da ponderação do sujeito, entrar em atividade. Quem é linguísticamente talentoso não necessita falar incessantemente e pode até ser, no global, silencioso. Também todo saber, assim parece, pode se reservar sua utilização. Todavia, essa relação tão óbvia entre poder e fazer, saber e utilização, posse e exercício de um poder não vale para o Fundus de capacitação técnica de uma sociedade que, como a nossa, fundamentou sua inteira configuração da vida em trabalho e ócio sobre a cursiva atualização de seu potencial técnico no atuar-em-conjunto de todas as suas partes. Aqui a coisa se iguala à relação entre poder respirar e ter que respirar, antes que àquela do poder falar e do falar. E o que vale para o Fundus presentemente disponível se estende a cada crescimento do mesmo: se esta ou aquela nova possibilidade foi uma vez aberta (na maioria das vezes por mieo da Ciência) e desenvolvida em ponto pequeno por meio do fazer, então ela traz em si o compelir à sua utilização em ponto grande e sempre maior e o tornar essa utilização uma permanente necessidade vital. Dessa maneira, é recusado à técnica, que é poder humano intensificado em atuação permanente, não apenas (como mostrado acima) o livre estado da neutralidade ética, mas também a benévola separação entre posse e exercício do poder. A formação de novas espécies de fazer, que ocorre sem cessar, se transporta aqui permanentemente em sua difusão na corrente sangüínea do agir coletivo da qual essas novas espécies não podem então ser mais separadas (a não ser por meio de maduro substitutivo). Por essa razão, a aquisição de novas capacidades, cada acréscimo ao arsenal dos meios, já traz aqui aos olhos, com aquela dinâmica conhecida à saciedade, um fardo ético, que em outro caso pesaria apenas sobre os casos singulares de sua utilização.
Além disso, há um aspecto de simples magnitude de ação e efeito, que tem significação moral. A extensão e o âmbito de efeito da moderna praxis técnica, como um todo e em cada um de seus empreendimentos singulares, são de maneira tal que introduzem uma dimensão completa, suplementar e de espécie nova nos quadros do cálculo ético valorativo., desconhecida de todas as anteriores espécies de ação. Falamos anteriormente de uma situação na qual ‘todo emprego de uma capacitação em grande escala’ traz consigo um sentido de direção de efeitos que se potencializam, maus efeitos, finalmente’. Temos que acrescentar agora que hoje toda utilização de uma capacidade técnica pela sociedade (o indivíduo singular não conta mais aqui) tende a crescer em ‘grande escala’. A técnica moderna está interiormente instalada para o emprego em grande escala e, nesse processo, se torna talvez demasiado grande para a extensão do palco sobre o qual ela se passa – a terra – e para o bem estar dos próprios atores – os homens. Isso, pelo menos, é certo: ela e suas obras se propagam sobre o globo terrestre; seus efeitos cumulativos se estendem possivelmente sobre inúmeras gerações futuras. Com aquilo que aqui e agora fazemos, e na maioria das vezes com os olhos sobre nós mesmos, influenciamos massivamente a vida de milhões em outra parte e no futuro, que não tiveram nenhuma voz naquilo que fazemos. Sacamos hipotecas sobre a vida futura por proveitos e necessidades presentes e de curto prazo – e, no que concerne a isso, por necessidades na maioria das vezes auto-geradas. Talvez não possamos evitar de todo agir dessa maneira ou semelhantemente. Porém, se esse é o caso, então temos que empregar a mais extrema atenção em faze-lo com honestidade em relação a nossos descendentes, ou seja, de maneira que as chance deles de se liberar daquela hipoteca não fique antecipadamente comprometida. O ponto relevante aqui é que a ingerência de dimensões remotas, futuras e globais em nossas decisões cotidianas, prático-mundanas é uma novidade ética, de que a técnica nos encarrega; e a categoria ética que é principalmente chamada ao primeiro plano por esse novo fato se chama: responsabilidade. Que esta se coloque, como jamais outrora, no ponto central do palco ético, isso inaugura um novo capítulo na história da ética, que reflete as novas ordens de grandeza do poder, que a ética doravante tem que ter em conta. As conclamações à responsabilidade crescem proporcionalmente aos feitos do poder.
Ao ultrapassar o horizonte da vizinhanca espaço-temporal, aquele alcance amplificado do poder humano rompe o monopólio antropocêntrico da maioria dos sistemas éticos mais tardios, sejam eles religiosos ou seculares. Sempre foi o patrimônio humano que devia ser promovido, os interesses e direitos do próximo que deviam ser respeitados, a injustiça que lhe sobrevinha é que devia ser reparada, seus sofrimentos que deviam ser mitigados. Os homens é que eram objeto do dever humano, no mais extremo caso, a humanidade, e nada além disso sobre essa terra. (Costumeiramente, o horizonte ético era traçado de modo muito mais estreito, como no ‘ama o teu próximo’). Nada disso perde sua força vinculante. Porém agora a inteira biosfera do planeta, com toda sua pletora de espécies, em sua recém revelada vulnerabilidade perante os ataques excessivos do homem, exige sua parte de respeito, devido a tudo aquilo que traz em si mesmo o seu fim – isto é, todo vivente. O direito exclusivo do homem à humana consideração e observância ética foi rompido precisamente com a conquista de um poder quase monopolístico sobre toda outra vida. Como um poder planetário de primeiro nível, não lhe é mais lícito pensar apenas em si mesmo. Em verdade, o mandamento de não legar a nossos descendentes uma herança desertificada, expressa essa ampliação do campo ético de visão sempre ainda no sentido de um dever humano perante homens – como intensificação de uma solidariedade inter-humana no sobreviver e no tirar proveito, na curiosidade, no desfrutar e admirar-se. Pois vida extra-humana empobrecida, natureza empobrecida, significa também uma vida humana empobrecida. Porém, compreendida corretamente, a inclusão da existência da plenitude enquanto tal no Bem humano e com isso a anexação de sua conservação ao dever humano vai além do ponto de vista utilitariamente orientado e de todo ponto de vista antropocêntrico. A visão ampliada reúne o Bem humano com a causa da vida em sua totalidade, ao invés de contrapor de maneira hostil aquele a esta e confere à vida extra-humana seu direito próprio. Seu reconhecimento significa que toda arbitrária e desnecessária extinção de espécies se torna já em si mesma crime, com inteira independência de idênticas ponderações do competente interesse próprio; e torna-se transcendente dever do homem proteger todos os menos reprodutíveis, os mais insubstituíveis de todos os ‘recursos’– o inacreditavelmente rico pool genético, deixado na seqüência dos Eônios da evolução. É o excesso de poder que impõe ao homem esse dever; e precisamente contra esse poder – portanto, contra ele mesmo – exige-se sua proteção. E assim ocorre que a técnica, essa fria obra pragmática da astúcia humana, introduz o homem num papel que apenas a religião por vezes lhe atribuiu: aquele de um administrador e guardião da criação. Ao ampliar o poder de seus efeitos até o ponto em que ele se torna perceptivelmente perigoso para a economia global das coisas, estende ela a responsabilidade do homem ao futuro da vida na terra, que desde então está exposta indefesa ao mau uso dessa potência. Com isso, a responsabilidade humana se torna pela primeira vez cósmica (pois não sabemos se o universo produziu ainda um semelhante além deste). A técnica ambiental, que se excita entre nós de modo verdadeiramente sem precedentes, é a expressão ainda hesitante dessa extensão inusitada de nossa responsabilidade, que corresponde, por sua vez, à extensão sem precedentes do alcance de nossas ações. Foi necessária a ameaça para o todo, que se torna visível, dos inícios efetivos da destruição, para nos levar a descobrir (ou redescobrir) nossa solidariedade com ele: um vexatório pensamento.
Finalmente, o potencial apocalíptico da técnica – sua capacidade para por em perigo a sobrevivência do gênero humano, ou corromper sua integridade genética, ou alterá-la arbitrariamente, ou até mesmo destruir as condições de uma vida mais elevada sobre a terra – coloca a questão metafísica, com a qual a ética nunca fora anteriormente confrontada, qual seja: se e por que deve haver uma humanidade; por que, portanto, o homem deve ser mantido tal como a evolução o produziu, por que deve ser respeitada sua herança genética; sim, por que, em geral, deve haver vida. A pergunta não é ociosa como parece (na ausência de alguém que seriamente negue todos esses imperativos), pois a resposta a ela é significativa para o quanto nós, a modo de permissão, estamos autorizados a arriscar em nossos grandes apostas tecnológicas e quais riscos são inteiramente inadmissíveis. Se existir é um imperativo categórico para a humanidade, então todo jogo suicida com essa existência está categoricamente proibido, e ousadias técnicas, nas quais esta é a aposta, ainda que apenas remotíssima, devem ser desde o início excluídas. Esses são, portanto, alguns motivos, pelos quais a técnica é um caso novo e particular de considerações éticas, sim para descer até os fundamentos da ética em geral. Ao faze-lo, há que se apontar particularmente para o concurso dos motivos 1 e 3, dos argumentos da ‘Ambivalência’ e da ‘Extensão’. À primeira vista parece fácil diferenciar entre a técnica benéfica e prejudicial, na medida em que se olha para a finalidade da utilização dos instrumentos. Arados são bons, espadas são ruins. Na era messiânica, as espadas serão refundidas em arados. Traduzido em moderna tecnologia: bombas atômicas são ruins, adubos químicos, que ajudam a alimentar a humanidade, são bons. Porém aqui salta aos olhos o embaraçante dilema da técnica moderna. Os ‘arados’ dela podem, a longo prazo, ser tão danosos quanto suas ‘espadas’ (E o ‘longo prazo’ de efeitos crescentes está, como foi mencionado, íntimamente ligado ao emprego da técnica moderna). Nesse caso são, porém, eles o próprio problema , os vitoriosos ‘arados’ e semelhantes. Pois podemos deixar a espada em sua bainha, mas não o arado no celeiro. De fato, uma guerra atômica total seria, de um golpe, apocalíptica.; porém, embora ela possa irromper a qualquer tempo e o pesadelo dessa possibilidade possa ensombrecer todos os nossos dias futuros, ela não precisa irromper, pois aqui se encontra ainda a salvadora distância entre potencialidade e atualidade, entre posse de um equipamento e seu uso – e isso nos dá esperança de que o uso seja evitado (o que aqui, de fato, constitui a paradoxal finalidade de sua posse). Mas há inumeráveis outras coisas, inteiramente desprovidas de violência, que contêm sua própria ameaça apocalíptica e que nós simplesmente agora e doravante temos que fazer, para em geral nos mantermos à tona. Enquanto o malvado irmão Caim – a bomba – jaz atado em sua caverna, o bom irmão Abel – o pacífico reator – continua discretamente a estocar seu veneno para futuros milênios. Mesmo aqui podemos talvez encontrar a tempo alternativas menos perigosas para extinguir a crescente sede de energia de uma civilização global, que confronta o desaparecimento das fontes convencionais – se a sorte caminhar junto com nosso sério esforço. Nós podemos até chegar a reduzir da extensão da voragem e voltar a poder viver com menos, antes que um esgotamento catastrófico ou a poluição do planeta nos constranja a algo pior que temperança. Mas é (p. ex.) éticamente impensável que a técnica biomédica deixe de rebaixar a mortalidade infantil nos países ‘subdesenvolvidos’ com elevados índices de natalidade, ainda mesmo que a miséria, em conseqüência da super-população, pudesse ser ainda mais terrível. Muitas outras quaisquer ousadias da grande tecnologia, originariamente vitoriosas, poderiam ser mencionadas para ilustrar a dialética, a faca de dois fumes da maioria dessas ousadias. O ponto principal é que precisamente as bênçaos da técnica, quanto mais somos dependentes delas, contêm a ameaça de se transformar em maldição. Sua hereditária tendência à desmesura torna aguda a ameaça. E é claro que a humanidade – graças às mesmas bênçãos da técnica – tornou-se demasiadamente numerosa para ainda ser livre para retornar a uma fase anterior. Ela só pode seguir adiante e tem que obter da própria técnica, com uma dose de temperante moral, os remédios para sua doença. Este é o ponto crucial de uma ética da técnica. Essas breves reflexões deveriam mostrar quão estreitamente a ‘ambivalência’ da técnica está vinculada à sua ‘magnitude’, ou seja, com o caráter excessivo de seus efeitos no espaço e no tempo. O que é ‘grande’ e o que é ‘pequeno’ se determina por meio da finitude de nosso palco terrestre – algo dado, o que nunca estamos autorizados a perder de vista. Precisos valores-limite de tolerância não são conhecidos para nenhuma das muitas direções nas quais avança o expansionismo do homem. Mas sabe-se o suficiente para poder afirmar que algumas de nossas cadeias técnicas de ação – entre elas algumas vitais – atingiram pelo menos a ordem de grandeza em que se encontram aqueles valores-limite, e que outras aí se associarão a elas, se for permitido um ulterior crescimento no ritmo atual. Os tempos nos advertem que nos encontramos na zona de perigo. Se alguma vez for alcançada uma ‘medida crítica’ em uma ou em outra direção, então a coisa pode nos escapar: uma reação positiva poderia começar ou um processo exponencial se desencadear, no qual os custos devoram as vantagens em um potencializador, talvez irreversível crescendo. A responsabilidade de longo prazo tem que buscar evitar precisamente isso. Como, entretanto, o lado glamouroso das aquisições técnicas ofusca a vista, o ganho próximo suborna o juízo e as carências muitos reais do presente (para não falar de suas manias) clamam por prioridade, as pretensões da posteridade, que estão confiadas àquela responsabilidade, terão uma condição difícil. No que ora foi dito, tornou-se visível ainda um ulterior traço de caráter da síndrome tecnológica, ao lado da ordem de grandeza e da ambivalência, que é de siginifcação ética própria: o elemento quase-compulsivo em seu marchar avante, que, por assim dizer, hipostasia nossas próprias modalidades de poder numa espécie de força automática, da qual nós, seus executores, paradoxalmente nos tornamos sujeitos. Em verdade, a restrição à liberdade humana por meio da reificação de seus próprios feitos sempre existiu, tanto nos cursos de vida individual como sobretudo na história coletiva. Desde sempre a humanidade foi em parte determinada por seu próprio passado, porém isso atuara, em geral, mais no sentido de uma força inibidora que propulsora: o poder do passado era antes aquele da inércia (‘tradição’) do que o da propulsão. As criações da técnica, todavia, atuam precisamente no último sentido e com isso dão à muito devorada história da liberdade e dependência humana uma nova, grave inflexão. Colocamo-nos já, com cada novo passo (= ‘progresso’) da grande técnica, sob a compulsão ao próximo passo e legamos a mesma compulsão à posteridade, que finalmente tem que pagar a conta. Porém, mesmo sem essa visão de longo alcance, o elemento tirânico enquanto tal na técnica atual, que torna nossas obras em nossos senhores e nos coage a seguir multiplicando-as, já apresenta em si um desafio ético – para além da pergunta sobre quão bom ou ruim são singularmente aquelas obras. Por causa da autonomia humana, da dignidade que exige que nós tenhamos a posse de nós próprios e não nos deixemos possuir por nossas máquinas, temos que trazer sob controle extra-tecnológicoo galope tecnológico.”
Nesse ponto se encerra o texto de Hans Jonas cuja tradução ora apresentamos. Para encerrar esta intervenção, gostaria, entretanto, de fazer uso de uma reflexão efetuada a propósito da leitura da obra principal de Jonas, denominada O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica. Refiro-me ao aspecto tematizado por Jonas ao final do artigo que apresentamos e que poderíamos denominar de dialética interna do poder tecnológico, envolvendo, de um lado, o domínio sobre a natureza e, de outro lado, a compulsão à sua utilização. Como se torna manifesto pelos termos mesmos dessa dialética, um poder compulsivo se revela, no limte, não como poder, mas como sujeição. Estamos em face do aspecto paradoxal da técnica moderna, que, segundo Jonas, pode levar à ameaça de uma catástrofe pelo excesso de sucesso, onerando de modo irreversível o ideário programático da ciência moderna, formulado por Bacon, segundo o qual esta comportaria a apropriação tecnológica da natureza como meio para realização do universal domínio humano. De acordo com esse ideal, ciência seria um saber sobre a natureza, cuja essência seria domínio e apropriação, com a finalidade de utilizar seus recursos e potencialidades para a melhoria do destino humano na terra. O paradoxo consiste em que a realização do ideal conduz efetivamente a uma dinâmica de sucesso e realização que necessariamente suscita uma desmesura de produção e consumo que, no desdobramento de sua dinâmica compulsória, presumivelmente subjuga qualquer tipo de organização social e política das forças humanas. O perigo emergente desse superdimensionamento da civilização tecnológica em escala planetária é o apocalipse de uma catástrofe universal, como conseqüência do curso e do rumo atual da própria realização do ideal baconiano de dominação tecnológica da natureza. Esse perigo é uma resultante direta não do fracasso, mas da exorbitância do sucesso daquele programa ideal. Tal paradoxo se torna especialmente agudo na dinâmica de relacionamento entre as duas principais vertentes do sucesso desse programa: o sucesso econômico e o sucesso biológico. O primeiro é representado pelo significativo aumento per capita da produção de bens com diminuição de dispêndio de trabalho, de onde decorre – ao menos das nações desenvolvidas do assim chamado primeiro mundo – um crescente aumento de bem estar e uma elevação, até mesmo involuntária do consumo para (potencialmente) todos no interior do sistema. Disso resulta uma intensificação gigantesca no metabolismo entre o corpo social e o meio ambiente natural. Esse aspecto – que por si só representaria um desafio para os recursos naturais finitos, potencializa-se e se acelera em razão do sucesso biológico do programa baconiano, representado pelo aumento exponencial da população em toda área sob efeito do poder tecnológico (ou seja, atualmente em todo planeta). Tal explosão da curva de crescimento populacional conduz à necessidade de aceleração e multiplicação dos recursos do sucesso econômico, bem como de seus efeitos, retirando da vertente econômica do programa a possibilidade de se impor limites no interior de seu próprio curso.
“Visto como problema de metabolismo planetário, a explosão populacional retira do anseio ao bem estar a faca e o queijo da mão e constrangerá uma humanidade que empobrece, para garantir a sua sobrevivência, àquilo que, para prover à felicidade, ela podia fazer ou não fazer, isto é, à sempre crescentemente impiedosa pilhagem do planeta, até que este pronuncie sua palavra de força e se furte à exigência excessiva … Como, depois disso, um resto de humanidade poderá começar de novo sobre a terra desertificada, isto se furta a toda especulação.” (Jonas, H: Das Prinzip Verantwortung, Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation, Frankfurt/M. Suhrkamp, 1979, p. 252)
A fórmula baconiana diz que saber é poder. No entanto, a realização dessa fórmula, no ápice de seu triunfo, tornou manifesta a dialética em que se envolve esse poder: o grau mais avançado de exploração técnica da natureza para sujeição desta à vontade de poder humana revela, sob o signo da iminente catástrofe ecológica, sua insuficiência e sua auto-contradição; esta se apresenta sob a figura da perda de controle sobre si mesmo em que mergulha o programa baconiano em sua incapacidade de proteger não somente o homem de si mesmo, mas também de proteger do homem a natureza e a própria natureza humana, tal como esta se revelou em sua essência até aqui. Essa dupla necessidade de proteção surge justamente por meio da extensão desmedida do poder alcançado no percurso do progresso técnico e da compulsão paralelamente crescente a seu emprego, que conduziu à espantosa impotência de por termo ao extensivo e previsível progresso destrutivo de si mesmo e de suas obras. “A profunda paradoxia, jamais suspeitada por Bacon, do poder criado pelo saber consiste em que ele, na verdade, conduziu a algo como ‘domínio’ sobe a natureza (isto é, a seu aproveitamento potencializado), mas com isso, ao mesmo tempo, à completa sujeição a si mesmo. O poder se tornou auto-suficiente (selbstmächtig), enquanto a promessa se converteu em ameaça, sua perspectiva de salvação em apocalipse” (id. 253).
O que seria necessário fazer, para que o limite derradeiro não fosse imposto pela própria catástrofe, é alcançar uma potência de terceiro grau, isto é, uma nova posição de poder sobre o poder da tecnologia, tornada autônoma, que seria a superação da impotência em relação à compulsão auto-imposta ao exercício do poder tecnológico. Esse novo poder (que se manifestaria, no limite, como renúncia à compulsão ao poder da tecno-ciência) não emergiria da esfera do saber e da conduta privada, mas da sociedade como um todo, de um novo sentimento coletivo de responsabilidade e temor.